Falcoeiros,
Saímos ao campo em madrugadas frias de inverno e, acompanhados pela nossa ave e pelo nosso cão mergulhamos no campo. Os nossos passos conduzem-nos a locais que nos permitem esquecer a vertigem da civilização. As asas da nossa ave, ansiosas, o cão, voluntarioso, e a corrida ou o voo da presa, que tudo precipita, levam-nos a um estado de profunda partilha com a Natureza. Nesse momento encontramo-nos com forças imutáveis que nos transcendem e recordam que o Homem é, apenas, mais um ser vivo entre os demais. Quando a nossa ave abandona o punho enluvado ou desce do céu, no encalço da sua presa ancestral, o nosso coração vai com ela. Não na expectativa vã de conseguir mais uma presa, mas na esperança de ver, viver, sentir, mais um bailado infinito, entre predador e presa, como ocorre desde há milénios, imutável e impoluto.
Hoje, a UNESCO reconheceu a Falcoaria praticada em Portugal como Património Imaterial da Humanidade. Hoje celebramos!
A paixão pelo lance criou na falcoaria praticada entre nós marcas intangíveis que hoje vemos reconhecidas. Esta prática, tão antiga como o próprio país que a sustenta, está presente, muitas vezes de forma quase subliminar, em inúmeros “locais”. Encontramo-la em túmulos antigos, em azulejos, em tratados (um dos quais celebra agora 400 anos), em palavras únicas. Mais importante, encontramo-la, ainda, nos nossos campos, praticada por homens e mulheres apaixonados que teimam em sair nas manhãs frias de inverno, acompanhados pela sua ave de presa e pelo seu cão, à procura de um lance de caça, numa peregrinação quase religiosa. A prática desses falcoeiros representa uma linha ininterrupta entre o passado e o presente.
Hoje, Portugal vê a sua prática reconhecida em conjunto com Itália, Alemanha, Paquistão e Cazaquistão. O Dossier Falcoaria corresponde assim à mais vasta nomeação na história da convenção UNESCO englobando agora 18 países. O Dossier: “Falcoaria” demonstra como este método de caça ancestral corporiza a riqueza cultural, criatividade e diversidade em vários locais do globo e como pode, até, ter um papel de relevo na criação de um ambiente de cooperação, tolerância e harmonia entre nações que se unem em torno de paixões comuns.
Numa era onde a pressão imposta pela globalização é enorme, o reconhecimento dado pela UNESCO visa a preservação de práticas que estão ou poderão ser ameaçadas pelo inexorável avanço do mundo moderno. O reconhecimento hoje atribuído à Falcoaria em Portugal deve, por isso, ser razão de orgulho não apenas para todos os falcoeiros nacionais mas, também, para todos os cidadãos deste país que vêm, nesta decisão da UNESCO, um reconhecimento claro à sua cultura e identidade nacionais. Hoje, mais que nunca, é necessário identificar, preservar e cultivar estes valores para futuro.
Acreditamos que esta decisão é apenas um ponto de partida. O reconhecimento obtido não é um fim em si mesmo mas uma interpelação. Interpelação, em primeiro lugar, aos próprios falcoeiros para que se mantenham fiéis à sua marca identitária, para que a conheçam, acarinhem, partilhem a sua prática com as novas gerações e a dêem a conhecer ao público. Depois ao poder politico para que crie condições para que esta prática se possa manter e desenvolver, eliminando os entraves hoje existentes e ajudando a que não caia no esquecimento ou na banalização. Interpelação ainda ao grande público para que conheça, valorize e compreenda os valores e filosofia subjacentes à falcoaria.
Muitos agradecimentos deveriam ser feitos neste dia. Muitos foram os heróis desta arte que lutaram para a manter quando pouca réstia de esperança existia. Este reconhecimento é uma vitória de todos eles. Não podíamos terminar esta nota sem uma palavra à geração que pratica/praticou desde os anos 70 e 80. Foi esta geração, que aqui consubstanciamos em Nuno de Sepúlveda Velloso, que manteve esta arte viva e a resgatou do seu estado de dormência. Foram estes homens e mulheres que conseguiram manter a prática quando esta atravessou um dos seus períodos mais difícieis na era moderna e é a eles que devemos hoje uma vénia pois, sem eles, nada do que o colectivo hoje vive seria possível.
Da alvorada da nossa História, uma parceria única entre Homem e Ave de Presa caminha para o futuro. Esperamos que hoje seja o principio de uma nova fase da falcoaria em Portugal e que a nossa prática tenha a virtude se conseguir manter fiel aos principios e valores ancestrais desta forma de caça.
Desejamos a todos bons voos e bons lances,
Pedro Afonso
Presidente da Associação Portuguesa de Falcoaria