Falcoeiro como nós – Patrick Morel

Falcoeiro Patrick Morel

Sou Belga e vivo a uns 40 Km a Sul de Bruxelas (Bélgica), numa região de grandes planícies ideal para a Altanaria. 

Descobri a Falcoaria em 1965 tinha eu 15 anos num livro encontrado no sótão da avó de meu amigo Gilles Lafosse. Era uma enciclopédia de caçador: «A Caça Moderna (la Chasse Moderne)» editado por Larousse em 1889. Umas vinte páginas escrita pela pena de P.A Pichot eram dedicadas à Falcoaria. Na altura adquiri uns gaviões com meu amigo Gilles. Começamos a treiná-los sozinhos sem mestres para nos explicar o que fazer.

Depois de treinar os gaviões tive falcões passageiros que vieram do Paquistão. Voei também algumas aves de baixo-vôo, ao longo dos meus primeiros anos (gaviões e três Açores). Desde o início sempre me senti mais atraído pelos Falcões.

Fui aceite como membro da ANFA (Associação Nacional de Falcoeiros e Açoreiros Franceses) como aspirante de falcoeiro, ao fim de alguns anos como  falcoeiro e mais tarde mestre Falcoeiro. Este tipo de graduação foi cancelada no final dos anos 1970 mas ainda existem verdadeiros «mestres», mesmo sendo raros. O conhecimento não se adquire logo, mesmo com a formação e um certificado dado por uma escola de Falcoaria, são necessários dezenas de anos de permitem dominar esta arte. 

Voei praticamente todos os tipos de Falcões (Peregrinos, Gerifaltes, Shaheen, Barbaries, Esmerilhões, Chiquera, e três híbridos Gerifalte/Peregrino),tanto juvenis como adulto e passageiros. Isto de maneira contínua após 1965 e durante 56 temporadas! Na maior parte foram voados em altanaria, mas alguns em voos mão por mão (no caso das gralhas). Fazia bastantes presas por temporada.

Voo as minhas aves diariamente. A minha temporada geralmente segue sempre o mesmo esquema:

Começo a temporada a treinar um juvenil em Junho/Julho e coloco em condições os falcões mudados. Costumo ir para a Escócia em férias (desde 1971) durante 4 semanas (de meados de Agosto a meados de Setembro). Lá voo ao Grouse. No regresso a casa termino a temporada com voos a perdiz e por vezes ao faisão e pato.

Pratiquei também voos mão-por-mão sobre gralhas no final de Outono e Inverno, apesar de nestes últimos anos o ter feito em menor número.

O sistema de caça na Bélgica baseia-se em  direitos de caça privada. Para poder caçar se num território, é necessário adquirir o direito de caça, o que pressupõe um orçamento muito elevado.

Durante a temporada, faço também várias viagens, a países vizinhos sobretudo em França, Alemanha e Suíça mais para o final do ano. Tenho tido oportunidades de voar mais ou menos dentro de todos os países Europeus.

No final da temporada (Janeiro), tenho tido a sorte de ser convidado várias vezes, a voar ao Cortisol em Marrocos.

Fui presidente da Associação Internacional de Falcoaria (IAF), que só é possível por eleição por maioria. Já houve excelentes presidentes que, apesar de não serem praticantes de Falcoaria, eram muito bons juristas e estando ao corrente das diferentes legislações e convenções que afetam a Falcoaria. Fui também secretário da IAF durante 14 anos e depois vice-presidente durante um ano.

A IAF na altura tinha cerca de  vinte membros. No final de 1990  éramos  80 membros, no final do meu mandato éramos 4 vezes mais. Foi uma grande honra ter sido eleito como presidente , foi uma experiência única que me permitiu praticar a Falcoaria um pouco por todo o mundo. Foi uma tarefa complicada dirigir um conselho de administração que é uma  verdadeira «Torre de Babel», mesmo o inglês sendo a língua preferida, são faladas 8 línguas . No meu caso como falo cinco línguas, foi sem dúvida um trunfo.

A Falcoaria tem uma definição muito precisa: É a arte de caçar e  capturar um animal selvagem no seu ambiente natural, com a ajuda de uma ave de rapina treinada para esse efeito.

O trabalho de presidente é muito complicado porque tem que lutar para obter o reconhecimento; e a legalização da falcoaria por todo o mundo. Baseia-se essencialmente em trabalho legislativo e de comunicação. Há três décadas a Falcoaria não estava muito bem vista, neste momento é aceite por todos os organismos nacionais e internacionais. O maior sucesso foi o reconhecimento da Falcoaria como património imaterial da Humanidade pela UNESCO. Foi um trabalho de equipe fantástico a partir de uma ideia que tive em 1995 e que levou quase 15 anos para alcançar.

A maioria das associações de Falcoaria na Europa, assim como nos Estados Unidos e alguns países da Ásia, organizam encontros entre Falcoeiros. São encontros amigáveis e informais, onde os falcoeiros caçam juntos sem espírito de competição. Por exemplo, a França e os Estados Unidos organizam uma reunião todos os anos, já a Alemanha organiza uma reunião de 2 em 2 anos e o Reino Unido uma reunião de 4 em 4 anos. Estes encontros permitem essencialmente aos Falcoeiros encontrarem-se para discutirem sobre a arte, comprarem material, compararem técnicas de treino e de voo, etc… Os encontros mais formais, geralmente, são organizados nos países do Leste da Europa com cerimoniais próprios.

Aprendi todas as técnicas da Falcoaria, mas a minha filosofia e ética de caça foi influenciada por  grandes «mestres» e amigos com os quais eu voei muito, como o Belga Charles Kruyfhooft e o Suíço Pierre Basset, para o voo da gralha. Para o alto-voo os Italianos Ernesto Coppaloni, Frikki Pratesi e Fulco Tosti, o Espanhol Félix Rodríguez de la Fuente, o Alemão Christian Saar, os Ingleses Steve Frank, Geoffrey Pollard e Roger Upton sem esquecer o francês Gilles Nortier que foi meu parceiro de caça durante quase 50 anos na Escócia . Todos eles tinham em comum uma ética e uma filosofia de vida próxima da minha.

Sou membro da Associação de Falcoaria Belga Club Marie de Bourgogne,  da qual sou presidente, também sou membro de uma dezena de associações de Falcoaria.

A primeira associação onde eu fui membro foi a ANFA (Association Nationale des Fauconnier et Autoursiers Français) en 1966, depois o Club Marie de Bourgogne em 1967, a NAFA (North American Falconers Association) também em 1967, a British Falconers Club em 1968, e DFO (Deutsche Falken Orden), etc.

Pratico principalmente Altanaria com Falcões peregrinos;. A minha preferência é a altanaria com cão de parar.  Considero que este é o modo de caça mais puro e mais complicado porque, para se ter sucesso regularmente, é necessário reunir condições próximas da perfeição; um excelente cão de parar de grande busca e um falcão altaneiro; é necessário ainda  uma perfeita cumplicidade e coordenação entre os dois.

Meu interesse por cães de parar começou ao mesmo tempo que a minha prática da Falcoaria quando eu tinha 15 anos. Desde então, eu sempre tive Pointer Ingleses. A disciplina canina que pratico é a Grande busca que é a «Formula 1» das competições nos concursos de cão de parar. Tive a sorte de ter alguns campeões de grande busca, parece que historicamente a Falcoaria é a origem do cão de parar.

Os cães são treinados a buscar rapidamente e a grande distância para encontrar caça . Uma vez que a localizem, param e o falcão é colocado a voar, rapidamente ganhará altura e irá centrar-se em cima do cão. Toda esta manobra requer um treino perfeito do cão e dos falcões, sempre com grande cumplicidade entre os dois.

Devo dizer que nas minhas memoráveis experiências, a Escócia é sem dúvida o lugar onde as condições permitem praticar o melhor da Falcoaria. As paisagens são sumptuosas, o clima é difícil e muitas vezes muito mutável, a caça é muito selvagem, o que nos fornece todos os ingredientes para uma Falcoaria de grande qualidade.

Em relação à minha ave preferida, o meu amigo Christian Saar costumava dizer que todo falcoeiro tem apenas um «Spitzen Falke» (que poderíamos traduzir por Falcão excecional) na sua vida. Voei muitos Falcões (Peregrinos, Barbarys , Shaheen e Gerifaltes) mas calculo que, entre estes Falcões, apenas seis podemos qualificar como excecionais. Recordo um Falcão gentil, dois Falcões passageiros e três Falcões nascidos em cativeiro que eram todos particularmente dotados para caça. Como regra geral, acredito que os gentis e passageiros são superiores a todos os outros Falcões.

Sempre escrevi artigos sobre a Falcoaria desde a minha juventude. Durante uma das nossas discussões pós-caça na Escócia com meu amigo Gilles Nortier, ele perguntou-me porque é que não escrevia um livro. O último livro sobre a Falcoaria em Francês foi o «Traité de Falconnerie» (Tratado de Falcoaria) de Abel Boyer escrito em 1948. Eu tinha participado na redação do livro «Sky Hunters» (Caçadores do céu) de Amirsaghedi e pareceu-me interessante escrever um livro sobre o assunto, descrevendo os métodos modernos de amansamento. Foram necessários cinco anos para escrever o fazer.

No início eram 1500 páginas que foram reduzidas a 400. O livro  foi editado e apareceu no mercado em 2013 e ficou esgotado rapidamente. Três anos mais tarde, escrevi um livro em inglês, depois um pequeno livro sobre material medieval, um livro sobre Brasões em Falcoaria, um livro sobre botões de Falcoaria e numerosos artigos por ano para revistas de Falcoaria ou de caça. Neste momento estou a terminar um livro sobre «Red Grouse Hawking».

Vários livros me marcaram : «L’Ars venandi cum avibus» (A Arte de Caçar com Aves) do Imperador Frederico II, é um livro escrito em 1245 mas que continua a ser uma atualidade surpreendente; o «Falconry» de Gilbert Blaine; «Reminiscences of a Falconer» do Major Fisher»; «A Hawk for the Bush» de Mavrogordato. De facto, tenho perto de 400 livros sobre a Falcoaria e em cada um existe sempre qualquer coisa a aprender.

Relativamente à evolução da Falcoaria nos dias de hoje, há coisas boas e  más: a telemetria e mais recentemente o GPS revolucionaram a prática. Podemos agora voar aves diminuindo o risco de perda. Falo em especial no  voo de Altanaria, que permite voar Falcões a enormes alturas (para lá da nossa capacidade visual). Considerando que no meu início a telemetria não existia e perdíamos regularmente as aves. A ciência veterinária também evoluiu enormemente, assim como certas técnicas e ajudas no treino, como os papagaios de papel e drones.

Entre as coisas de que gosto menos: os pseudo-espectáculo de Falcoaria; as escolas de Falcoaria; as competições e o aspeto comercial que poluem nossa arte e frequentemente dão uma má imagem da verdadeira Falcoaria! Todos os seus desvios estão muito longe da ética e da definição de que Falcoeiros convictos defendem. Há também a perda do vocabulário da Falcoaria que também  faz parte da tradição e da arte.

A Falcoaria Árabe é fundamentalmente diferente da Falcoaria ocidental. Os Árabes praticam um voo mão-por-mão onde o resultado conta muito mais que para os falcoeiros ocidentais. A captura é essencial, às vezes à custa da qualidade do voo. Têm uma visão da Falcoaria próxima daquela praticada por seus ancestrais, que capturavam um Falcão passageiro que se tornava um meio de subsistência ou, pelo menos uma maneira de ter um complemento de calorias no inverno. A Falcoaria ocidental, por outro lado, é uma falcoaria de lazer onde a estética e qualidade e beleza do voo são mais importantes que a presa. Existem, por outro lado, aspetos da Falcoaria Árabe que são muito cativantes . Por exemplo, após a caça, os Falcoeiros encontram-se sobre tendas para escutar poetas ou contar a história da caça vivida durante o dia . Este aspeto é muito mais amigável do que a própria caça!

A Falcoaria é uma arte e um modo de vida.

Charles d’Arcussia a escrito em 1593 um soneto que resume bem a dificuldade desta arte:

Nem todos se alegram a voar connosco. Também não é de todos o saber e poder fazer…

Apesar dos vários anos em que pratiquei Falcoaria, continuo a ficar maravilhado em cada voo, quando vejo um Falcão altaneiro a voar perder de vista, e sempre me pergunto qual será a ligação mágica entre ele e o falcoeiro.

Faça download desta entrevista em Francês aqui: Final Entretien Portugal Patrick Morel

Entrevista Patrick Morel para a Associação Portuguesa de Falcoaria
Responsáveis: Sophia Gabus e o Grupo Falcoaria no Feminino
Tradução: António Carapuço e Jorge Teixeira
Correção ortográfica: Cristina Meireles .

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